A “gloriosa”
Rede Globo, que tantos peixes podres vende a preço de ouro para a população
menos provida de senso crítico, especialmente para a coletividade novelista e big-brotherista
de plantão, obtém agora mais um imerecido êxito, que, desta vez, consiste em
convencer a massa – a partir do seu efusivo "oba-oba" promocional –
de que a abordagem sobre autismo que se faz na atual novela "Amor à Vida, das 8:30, é coisa de
relevante utilidade pública. Mas...E o povo, engole?... Sim, o povo engole
quase tudo que vem de lá!
No
entanto, o que se observa é que grande parte dos que nada sabem do assunto,
seja por falta de experiência vivencial ou de efetivo interesse, não só
“engole”, no sentido de entregar-se ao entretenimento descompromissado com a
verdade, mas, também, acredita, encantada e comovida, em mais essa grande
balela Global que se destina a consolidar conceitos duvidosos.
O que
eu percebo, na condição de intrinsecamente envolvido com a síndrome há 36 anos,
é que o novelista Valcyr Carrasco – grande vendedor de ilusões que nada entende
de autismo – presta agora, nesse quesito, juntamente com a emissora que o
contrata, nada mais que um grandioso desserviço a essa população tão facilmente
encantável, que, com as devidas exceções, não pensa por si.
Afinal,
se o referido novelista pesquisou sobre o autismo para a construção da
personagem, parece que pesquisou muito mal, exatamente, talvez, por saber que o
público alvo das novelas compra o “peixe” televisivo com o cheiro que ele vier,
bem como, independentemente de ele ter sido pescado num brejo sujo qualquer. E,
com isso, pode ser que até a visivelmente talentosa atriz que ora se esmera em dar
alguma verossimilhança ao tosco script que lhe impingiram saia, ao final, com a
sua bagagem artística meio desarrumada, tamanha é a deturpação que ali se faz
sobre o difícil papel que ela desempenha: o de uma pessoa portadora de autismo.
Vejo
com lástima, que, num tema que tanto carece de esclarecimento sério e
fidedigno, tendo em vista o desconhecimento generalizado que advém, em parte, da
sua própria complexidade, alguém se arvore a delinear a coisa para representação
cênica de forma tão surreal e equivocada, para não dizer “irresponsável”.
O
fato é que a moça autista, que, na estapafúrdia visão de Carrasco, “apaixona-se”
perdidamente pelo advogado, certamente culminará em achar a milagrosa e utópica
cura do seu autismo unicamente através dos apelos da carne e da lascívia sobre
a cama, coisa que, absolutamente, nem se aproxima das perspectivas já traçadas
por estudiosos, em qualquer tempo, para qualquer uma das inúmeras modalidades e
graduações de autismo. Isto porque, para um autista, o apelo sexual é
instintivo, e não romantizado, e já o amor, em sua concepção genuinamente pura
e altruísta, é, realmente, o que há de mais importante para alguma modesta
evolução de um autista rumo a alguma autonomia e à normalidade de condutas,
mas, a paixão, por sua vez, não lhe passa de um sentimento alheio, que nada pode
ter a ver com o seu mundo, especialmente, quando, em nome dessa paixão, a
personagem ainda se vê, em tempo recorde, capaz de manifestar atitudes de
sedução, mesmo que em modesta escala, e a interagir com o “amado” sob o condão
de alguma percepção irônica, metafórica e produtivamente emocional, bem como,
passando, de repente, a se comportar em público sob a égide da coerência e das
normas esperáveis de etiqueta social. Ora, pombas, tenha paciência, senhor
Valcyr Carrasco: vá se mostrar conhecedor de autismo assim no raio que o parta.
Todos
sabem que novela é gênero meramente ficcional e, como tal, caracterizado por
intenso exagero, mas os temas polêmicos que nelas se vêem inseridos são sempre
uma exceção a essa regra, pois, enquanto sujeitos à clara e consolidada
intenção de formar opinião, quebrar preconceitos e desmistificar temas pouco
compreendidos pelo público em geral, eles não podem nunca ser traduzidos sem que
se leve em consideração a responsabilidade social do escritor.
Enfim, como o tempo escasso me obriga a fazer com que esta manifestação
não passe do repúdio próprio de um interessado, sem a pretensão de se
constituir em um vasto tratado sobre o assunto, saio de cena para que cada qual
dos que não se imbuem de dores diretas com o autismo comprem da Globo o peixe que
quiserem. No entanto, gostaria muito que aqueles que têm o ofício de escrever,
pesquisassem melhor para fazê-lo, sempre que quiserem abordar temas complexos e
polêmicos, a fim de que seu ofício se enquadre ao menos um pouco num dos
principais objetivos que lhe são inerentes: contribuir para a informação séria
e desprovida da atitude intencional de imbecilizar o povo.
Mailton Rangel