"Zé no carnaval" - Óleo sobre tela - Mailton Rangel.
SOLILÓQUIO
Somente em versos traduzo,
O timbre dos meus gorjeios
E eu,
Que em vez de nascer direito,
Feito meu pai,
Águia de peito farto e índole fecunda,
Cheguei-me tão torto quanto atordoado.
E eis, que, por aqui,
Mais de uma vez,
Com minh’asinha esquerda mais preparada,
Pus-me a depositar – voltas e meias,
Um refugado papel sobre a mesa,
Com o tino dúbio de desempenhá-lo.
Com isso,
Não demorei tanto para sonhar em voar;
Embora que, paradoxalmente,
Eu ainda não conseguisse domar a contento
Esta razão primordial das minhas procuras:
– A indescritível condição de poder planar
Ao fluxo de quaisquer intempéries!
E assim,
Tal como faria aquele
Que um dia venceu sem sombra
O torpe “silêncio das línguas cansadas”,
Sigo vomitando versos confusos,
Que falam de uns poetas mortos,
Que tanto insistem em viver comigo!
Mas isto,
Vindo ao encontro,
É o que ainda me mostra um tanto balsâmico,
Feito abraço de amigo do peito,
Beijo de mãe,
Ou um simbólico cesto de pão!
Entretantos,
Forjado em vis aparecedouros do esgoto humano,
Creio que eu não fosse antes somente ruim,
Feito gente truncada que se acostuma com tudo,
Posto que, em tal estágio,
Eu somente me desfigurava,
Além do menos,
Como um exímio acostumador,
Porque as minhas exéquias
Já não reclamavam de nada.
Todavia,
Em belo dia,
Quando eu finalmente ascendi de vez,
Com auto-confiança e determinação,
Olhando lá do alto as minhas limitações...
Foi com o ruflar das minhas asas
Que eu compreendi,
Que eventuais becos sem saída no curso do vôo
– Pseudo-risco natural dos que sonham mais alto,
Nada mais são que a infantil limitação,
Daqueles que nem sabem voar para trás,
Como forma essencial de aprimoramento
Para o seu novo e áureo recomeço.
Detectei, pois, que,
Em pleno vôo ou a cada arremesso,
Surgem-nos determinados labirintos
Em que a única saída salutar plausível
Consistiria no próprio pórtico de entrada;
O que suscita e traz à baila a velha certeza
Que ainda nos exige um pouco mais
Que a simples humildade de retroceder:
Há, pois, que se reinventar o fôlego novo,
Para que se consiga voar em dobro,
Mesmo sob o risco iminente
De que tal retorno nos exponha
Ao mais chicoteante escarnecimento,
Por parte das mesmas aves de rapina,
Que já nos puderam apreciar
Estatelando o bico e a cara depenada
De encontro a um sólido rochedo.
Aquelas, que,
Estacionadas por seu próprio peso,
Temem se esforçar pra voar de verdade,
E por isso, igualmente ignorariam
O peso e a valia de se respeitar a queda alheia,
Porque também não lograriam o gozo do prêmio
Pela busca de um novo brilho de horizonte!
E se o ato mais complexo
Consiste no rumo vertical ascendente,
Quando o rarefeito ar nos produz vertigens,
Impedindo-nos de divisar
Entre a prontidão e a letargia;
Entre o sonho e a realidade;
Entre o acerto e a estupidez...
Este será destarte o exato instante
Em que, na busca de uma luz posicionada
Acima do imediato breu que vislumbramos,
Aí é que nos tornaremos paulatinamente habilitados
Para transpassar, com segurança e força redobrados,
Todo e qualquer manto de noite
Que insista em procrastinar
O nosso ansiado alvorecer,
Bem como,
Passíveis de ver e elucidar
As mais imediatas perspectivas de Deus!
...Todavia,
No afã de sufocar neste momento
A controversa pretensão de enveredar por tanta bruma,
Diga-se que só vim pra traduzir o motivo
Por que sempre me lanço em voos errantes,
Feito um pardal novo à fúria do vento:
É que essa doce quimera que eu respiro
E que tanto me descondiciona,
Acima e a despeito de qualquer alegoria...
É voar!...
Mesmo que desprovido dos agudos olhos de um lince,
Do vislumbre de um arco-íris guia,
E da salvaguarda das bengalinhas brancas;
Porque se eu sigo tropeçando em pedregulhos,
Transformo-os em alicerce,
Edificando-me sobre todos eles;
E sempre que – até sem pretender,
Também arranho algumas flores com as unhas,
Eu acabo absorvendo um tanto dos seus perfumes.
Entrementes,
Considerando-se que voar,
Pode não ser tão preciso quanto navegar,
Vejo que não devo abstrair minha atenção
Das inexoráveis marcas que o tempo traz,
Porque são elas o inconfundível alarme
Que tange minh’alma de pássaro-poeta,
Mostrando-me que traio a mim mesmo,
Sempre que desempenho apenas papéis,
Que durmo nas horas de vigília,
Ou que me proponho a acreditar
Que as tolas maquiagens de cascas e penas
Pudessem ser capazes de suplantar
Mesmo que a mais simplista modalidade de amor.
Portanto,
Agora e sempre,
Tudo que quero é continuar voando assim,
E mesmo que eu nem soubesse como,
Nem quando,
Nem para onde...
Insistiria obstinadamente em perseguir
Esse lirismo tão libertador,
Que não mais de mim se esconde!
(Mailton Rangel, Publicado no livro POEMADURO)
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